segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

A mortalha

   Nos meus tempos de criança, não havia esta história de haloween – não sei se escrevi corretamente. Por mim, escreveria “ralouím”. E com acento no “i”, para não se ter dúvidas quanto a tal da pronúncia estrangeira. Fantasia de terror, somente no Carnaval, e olhe lá! Mas eram autênticas. Lembro-me que, aos dez anos, fiz uma exigência à minha mãe: queria uma mortalha para brincar o carnaval no Grapiúna Tênis Clube. Talvez o jovem leitor não saiba o que significa uma mortalha. Mortalha, a rigor, significa veste funerária. Ou seja: a roupa com que se veste o defunto antes de encaminhá-lo para o além. Mas, no meu carnaval de infância, a mortalha era uma representação fantasmagórica. Nos antigos carnavais, as pessoas gostavam de se fantasiar de almas de outro mundo. Na cabeça, um capuz em forma de cone, com abertura nos olhos, à semelhança de um verdugo. No corpo, um longo e frouxo sudário que descia até os pés. Quando muito pequeno, eu morria de medo daquelas “almas”, embora elas me fascinassem. Mas, quando me entendi de gente, queria ser uma delas. Era tudo o que eu queria num carnaval. Então, exigi, no limiar da súplica e da petulância, à minha mãe: - Quero uma mortalha preta! E das mais horríveis! Tudo deu certo. Minha mãe comprou o pano e coseu a mortalha preta. Pedi a Geraldo, meu amigão mais velho, e grande artista dos pincéis, que pintasse uma caveira, com dois fêmures cruzados à maneira dos piratas, bem no peito. Era uma terrível caveira amarelo-ouro. Um contraste perfeito com o negro do fundo. O resultado foi mais que extraordinário. Brinquei todas as matinês com a minha mortalha. Fiz inveja a Roby, Cláudio, Zelito e Zé. Somente eu tinha aquela mortalha terrível, confeccionada com o esmero de minha mãe e rematada com o talento maravilhoso de Geraldo! Mas, no último dia do carnaval de 1972, apareceu alguém com uma mortalha mais bela e terrível que a minha. Era uma mortalha vermelha, que parecia pairar no ar. A voz que vinha do véu – ela não usava capuz, mas um translúcido véu de rendas púrpura – era bela, maleável e agradavelmente feminina. Era a voz de uma menina que dizia chamar-se Aninha. Tomei Aninha pela mão e a levei para o salão. Várias músicas de carnavais, hoje sepultadas, fizeram a alegria de Aninha. Mas a de que eu mais gostava era esta: “Vou beijar-te agora Não me leve a mal Hoje é carnaval.” A minha vontade era mesmo esta: beijar Aninha. Num impulso de coragem, inimaginável para um garoto tímido, acanhado, de dez anos de idade, puxei fora o meu capuz. Ansioso, ergui um tantinho o véu da garota, e, inclinando-me, beijei os lábios estranhamente úmidos e frios de Aninha. Foi apenas um “selinho”, hoje sei. Mas, naquele dia inesquecível de terça-feira de carnaval, o “selinho” me parecia realmente um beijo apaixonado. Bem que eu queria ficar o tempo todo com Aninha. Ver, finalmente, a sua face, sempre semicoberta pela cachoeira púrpura de seu véu rendado. Mas meu futuro cunhado, Munyr, disse-me que era a hora de ir embora. Quase anoitecia. - Munyr – exigi, como sempre –, quero tirar uma foto com Aninha! Ele, sempre feliz e generoso, achando engraçado aquele namorico de guris, não se fez de rogado. Chamou o fotógrafo, que bateu a foto inesquecível. Na pose, lembro-me bem, alcei, tenramente, a minha mão direita à cintura de Aninha, enquanto a outra fazia o “V” da vitória. Sim, beijar Aninha havia sido a minha vitória, maior ainda que o sucesso de minha mortalha negro-ouro. Ainda hoje tenho a foto. Mostro a quem quiser. Na minha foto, porém, você não verá Aninha. No velho retrato, estou sozinho. Sim, ao meu lado, ninguém encosta o rosto ao meu, nem me enlaça pela cintura, pouco antes de me beijar, furtivamente, a face surpresa, e se evadir para todo o sempre, como um belo peixinho mergulhado numa torrente de pessoas em retirada. E sem ,sequer, mostrar-me a face, cuja formosura ainda hoje me tortura a imaginação. Lá, na foto antiga, amarelada e corroída pelo tempo, está a minha alegria. Mas só a minha alegria. Lá, estou sozinho. Completamente só. Sequer uma sombra, dentre as muitas que invadiram melancolicamente o final daquela tarde, é a réstia de Aninha. Aninha não está lá! Na minha velha foto, Aninha ainda hoje se recusa a aparecer! Jamais apareceu, por mais que eu espere que ela se manifeste um dia. Tudo em vão. O espírito dos mortos não se deixa capturar pelas lentes das máquinas fotográficas, nem se rende às tolas angústias dos que ainda estão vivos. Mas, se você tiver uma imaginação pura e verdadeira, enxergará, na velha foto, Aninha ao meu lado, feliz por estar comigo. Não o simples fantasma de uma menina a brincar o carnaval, vestida com a mesma mortalha com que foi, há muitos e muitos séculos - e hoje disto eu sei -, sepultada. Verá, sim, um rosto que eu nunca vi. Verá, finalmente, a face, finalmente desvelada, e incrivelmente bela, de minha primeira namorada.


A mortaha

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